16 de abril de 2020

Alegremo-nos! Vive Aquele que estava morto


Riquíssimo o Sermão do Papa e Doutor da Igreja, São Gregório Magno (séc. VI), sobre a passagem do Evangelho em Jesus Ressuscitado entra pela porta fechada, onde se encontravam os discípulos por medo dos judeus. 

Colocando-Se no meio deles, comunica-lhes a paz e, com o sopro, comunica-lhes o Espírito, enviando-os em missão; e, na segunda parte, a nova manifestação do Ressuscitado e a profissão de fé feita por Tomé ao ver e tocar as chagas gloriosas do Senhor – “Meu Senhor e meu Deus” (cf. Jo 20, 19-31).

“A primeira questão que nos propõe a leitura do texto evangélica é esta: como pôde ser real o Corpo do Senhor depois da ressurreição, se pode entrar na casa estando as portas fechadas? Porém, temos de ter presente que as obras de Deus não seriam admiráveis se fossem compreensíveis para a nossa inteligência; e que a fé não tem mérito algum, se a razão humana lhe oferece as provas.

Mas estas mesmas obras de nosso Redentor, que em si mesmas são incompreensíveis, devemos considera-las à luz de outras situações suas, para que as façanhas mais maravilhosas tornem críveis as coisas simplesmente admiráveis.

De fato, aquele Corpo do Senhor que, fechadas as portas, entrou onde estavam os discípulos, é exatamente o mesmo Corpo que, no momento de Seu nascimento, saiu aos olhos dos homens do seio selado da Virgem. O que tem, pois de estranho, que Ele, depois de Sua ressurreição, já eternamente triunfante, entrasse através das portas fechadas o que, vindo para morrer, saiu do seio selado da Virgem?

Mas como, diante daquele Corpo visível, duvidava a fé daqueles que O contemplavam, em seguida mostrou-lhes as mãos e o lado; ofereceu-Se para que apalpassem aquela carne, que tinha introduzido através das portas fechadas.

De uma forma maravilhosa e inestimável nosso Redentor, após Sua ressurreição, revelou um Corpo ao mesmo tempo incorruptível e palpável, para que o mostrando incorruptível convidasse ao prêmio, e apresentando-o palpável assegurasse a fé.

Mostrou-se, pois, incorruptível e palpável para deixar fora de dúvidas que Seu Corpo, depois da ressurreição, era da mesma natureza, mas de glória distinta.

E lhes disse: ‘A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou, assim também Eu vos envio’. Isto é, como Pai, que é Deus, enviou a mim que sou Deus, assim também Eu, que sou homem, vos envio a vós, que sois homens.

O Pai enviou ao Filho e determinou que Se encarnasse para a redenção do gênero humano. Certamente quis que viesse ao mundo para padecer, entretanto, amou ao Filho a quem mandou para a paixão. Também aos Apóstolos que Ele escolheu, o Senhor os enviou ao mundo não para gozar, mas – como Ele mesmo foi enviado – para padecer, de forma semelhante aos discípulos que são amados pelo Senhor, mas são enviados ao mundo para padecer. Por isso Ele disse:

‘Como o Pai me enviou, assim também Eu vos envio’, isto é, quando Eu vos envio ao abalo das perseguições, estou vos amando com o mesmo amor com que o Pai me ama, e que, apesar disso, fez-me vir para suportar tormentos.

A palavra ‘enviar’ pode entender-se também de Sua natureza divina. Na verdade, diz-se que o Filho é enviado pelo Pai, enquanto que é gerado pelo Pai. Na mesma ordem de coisas, o próprio Filho nos fala de enviar-nos o Espírito Santo que, sendo igual ao Pai e ao Filho, contudo não Se encarnou.

De fato, Ele diz: ‘Quando vier o Paráclito, que vos enviarei deste o Pai.’ Sendo que deveríamos interpretar a palavra ‘enviar’ unicamente no sentido de ‘encarnar-se’, de modo algum poderia dizer-se do Espírito Santo que seria ‘enviado’, visto que nunca Se encarnou.

Sua missão Se identifica com a processão, pela qual procede do Pai e do Filho. Portanto, assim como se diz do Espírito que será enviado porque procede, assim também se diz corretamente do Filho que é enviado, no sentido de que é gerado”. (1)

Três pontos podem ser descatados:

- O primeiro, quando o bispo fala do Mistério da Encarnação do Senhor no ventre de Maria, e este mesmo corpo glorioso, o corpo do Ressuscitado. Maria concebendo pela ação do Espírito mantém a perpétua virgindade, como expressa um dos Dogmas Mariano da Igreja Católica.

A profissão de fé que fazemos na Encarnação do Senhor não se separa de outra verdade inseparável que também professamos no Creio, a Sua Ressurreição, tendo passado pela morte.

- Segundo, sobre o Senhor Ressuscitado ter-Se manifestado de forma incorruptível e palpável, nos assegurando o mesmo destino, e nos possibilitando o afastamento de qualquer dúvida de Sua vitória sobre a morte, de Sua Ressurreição.

- Terceiro, o fato de, sendo Deus, segunda pessoa da Santíssima Trindade, ter sido enviado pelo Pai, com a presença do Espírito que sobre Ele pousava inseparavelmente, e que tendo nos amado, nos amou até o fim, suportando o padecimento, o sofrimento e a morte para nos redimir e nos reconciliar com Deus por Seu Sangue derramado.

E agora, Ele mesmo, vivo e glorioso, é quem nos envia em missão no mundo, também com a assistência do Espírito Santo, que nos é dado pelo Seu sopro divino.

Na criação, recebemos o sopro para termos vida, e com a Ressurreição do Senhor recebemos o Espírito Santo, que nos faz novas criaturas, e nos assiste na remissão dos pecados.

Com este Sermão, temos a graça de renovar nossa fé na Ressurreição do Senhor, pois se Cristo não tivesse ressuscitado, vazia seria a nossa pregação, e ilusória a nossa fé, como afirmou o Apóstolo Paulo (cf. 1 Cor 15, 13-17).

Também temos a graça de renovar nossa fidelidade ao Senhor, que nos envia com a missão de anunciar e testemunhar a Boa-Nova do Evangelho, fazendo necessárias passagens em nossa vida: da tristeza para a alegria, do desânimo para a esperança; do medo para a coragem, da morte para a vida. 

Oremos: 

“Ó Deus de eterna misericórdia, que reacendeis a fé do Vosso povo na renovação da festa pascal, aumentai a graça que nos destes. E fazei que compreendamos melhor o Batismo que nos lavou, o Espírito que nos deu a vida e o Sangue que nos redimiu. Por nosso Senhor Jesus Cristo, Vosso Filho, na Unidade do Espírito Santo. Amém". (2)


(1) Lecionário Patrístico Dominical - Editora Vozes - PP. 343-344 
(2) Oração do dia do 2º Domingo de Páscoa.

Dom Otacilio Ferreira de Lacerda - Bispo da Diocese de Guanhães - MG

O Ressuscitado caminha conosco. Alegremo-nos!

A passagem dos discípulos de Emaús marca profundamente nossa Espiritualidade genuinamente Pascal, e por nos sentirmos, por vezes, profundamente com eles identificados, sejamos enriquecidos por este Comentário.

“A caminhada dos dois discípulos de Emaús coloca-nos perante o Mistério da Ressurreição de Jesus e o nosso modo de O reconhecermos.

É importante, em primeiro lugar, não banalizar esta realidade central do cristianismo com representações insuficientes: a Ressurreição de Jesus não é como a de Lázaro, o qual regressa à vida com um corpo igual ao precedente, para depois morrer de novo.

Neste caso, os discípulos teriam certamente reconhecido o Homem que até três dias antes tinham visto vivo, se a Sua Ressurreição fosse semelhante à de Lázaro. Pelo contrário, Jesus Ressuscitado entrou numa condição radicalmente nova e inconcebível para os recursos humanos apenas, à qual Ele dá origem precisamente com a Sua Páscoa.

Jesus está vivo para sempre e por isso pode aproximar-Se de cada homem. É verdade que a Sua aproximação e o Seu caminhar conosco não é reconhecível por nós só com os olhos do corpo: é preciso que o próprio Ressuscitado nos abra os olhos fazendo-nos percorrer um caminho de conversão [...].

O texto quer refletir precisamente acerca disto: como podemos encontrar o Ressuscitado, cuja presença não nos é dada na forma de uma realidade que podemos ver e tocar?

Os olhos do corpo já não bastam (como não foram suficientes para os discípulos da primeira hora), e então é preciso refletir sobre a condição mediante a qual o Ressuscitado Se apresenta, sobre o modo no qual Ele concede também a nós que O reconhecemos [...].

Os discípulos estão dominados pelas suas desilusões, mas ao mesmo tempo compreende-se que a sua vida não fora até então uma vida de pessoas superficiais: eles tinham-se deixado inflamar pelo Projeto de Jesus (“Esperávamos”; Lc 24,31).

Ambos representam uma Humanidade que procura, deseja ou que pelo menos soube a certa altura desejar coisas grandes; são pessoas dispostas a gastar a sua vida por coisas grandes, e embora na desilusão não se fecham, confessam a sua tristeza (“entristecidos”: Lc 24,17), aceitam qualquer palavra que possa eventualmente chegar até eles e abrem espaço a um desconhecido que se intromete e se põe a caminho com eles. [...]

É importante então compreender que os olhos não veem, não porque o Ressuscitado não está realmente presente, mas porque estão ainda prisioneiros e devem ‘adaptar-se’ à nova luz, porque o coração ainda não sabe arder.

Não veem porque ainda não descobriram a fulgurante sabedoria divina da Cruz, de um Deus que Se ofereceu aos homens sofrendo e morrendo de modo que compreendessem toda a Sua ‘Paixão’ por eles.

Pois bem, só a familiaridade com a Palavra de Deus pode introduzir-nos nesta sabedoria. A Escritura é a meditação contínua dessa Palavra que nos torna acessível o conhecimento do Amor Crucificado por Deus; a Escritura não tem mais para dizer senão o Amor do Pai em todas as suas cambiantes.

É depois na Fração do Pão que nos é entregue, num modo real e imediato, o gesto que abrange e exprime o sentido da vida de Jesus, inteiramente marcada pelo dom total de Si mesmo.

Com estes meios, ainda hoje Jesus Ressuscitado liberta os olhos e o coração do homem e permite-lhe reparar n’Ele, o Vivente, que partilha a caminhada conosco.” (1)

Concluindo, que sintamos renovar em nosso coração, o desejo de caminhar com Jesus Ressuscitado, com a comunidade, espaço privilegiado para ouvir, acolher Sua Palavra, e nos alimentarmos de Sua Divina presença no Pão da Eucaristia, que se partilha na mais bela Mesa da comunhão e da Vida Plena: o Altar do Senhor.


(1) Lecionário Comentado - pp. 441/443. 

Dom Otacilio Ferreira de Lacerda - Bispo Diocesano de Guanhães/MG.