18 de maio de 2020

Silêncio...

Não é a ausência de som, mas de ruído. 
Em 1951, o compositor americano John Cage visitou a câmara anecóica mais avançada do mundo da época. Com o seu ouvido apurado poderia ouvir apenas o silêncio, mas não. Ouviu dois sons. Saindo da câmara falou com o técnico e perguntou-lhe que dois sons eram os que tinha ouvido. Um mais elevado e outro mais baixo. Juntos perceberam que Cage tinha escutado o som do seu sistema nervoso e o bombear do sangue. Imaginam? 
Silêncio é a escuta daquilo que nos dá vida e faz viver. No silêncio não nos abstraímos do mundo à nossa volta, mas encontramos diversos momentos presentes que se cruzam e entrecruzam em infinitas tonalidades. É a sinfonia da vida escutada em momentos de quietude.
”Não podemos ter medo do silêncio, pois, tem tanto para nos ensinar.” (Ryan Holiday, ‘Stillness is the Key’)
Quando cultivamos o silêncio abrimos a mente ao mar por onde navegam os pensamentos mais íntimos e criativos. Lembras-te daquela ideia luminosa que proveio do silêncio?
Mas hoje o desafio é muito grande porque o ruído não chega apenas através dos ouvidos. Chega também pelos olhos colados nos diversos ecrãs, ou pelos pensamentos exteriores que consomem a nossa atenção para a converter em preocupação. Vemos muita informação. Tanta que a sua suposta luminosidade cega-nos ao longo do tempo. Tanto que perdemos toda a riqueza visual que o silêncio revela.
”A totalidade da vida reside no verbo ‘ver’.” (Teilhard de Chardin s.j.)
O silêncio revela o espaço entre as notas.
”Com as notas lido melhor do que muitos pianistas. Mas as pausas entre as notas - ah, é aí que reside a arte!” (Arthur Schnabel, pianista)
A ausência de momentos de pausa no dia deixa-nos sem fôlego e surdos. Não é, por isso, de admirar quanta dificuldade sentimos ao escutar os outros. Não temos tempo. Nem sequer temos tempo para estar a sós com os nossos pensamentos, em silêncio. 
Daí a dificuldade de tantos os que se dirigem a Deus e sentem que Ele não responde. Ele que tanto fala pelo silêncio, simplesmente, não consegue fazer-Se ouvir. Conto-te um segredo… shh… podemos sempre recomeçar.

Miguel Oliveira Panão

In: imissio.net 14.11.2019

Veni Sancte Spiritus

VENI SANCTE SPIRITUS
José Augusto Mourão, OP
Vem, Espírito de Deus
vem como uma noite de fogo
e acorda o que em nós, na luz do dia, dorme
Vem, memória aberta, sobre o que acontece
e cumpra-se o que às nossas pobres visões presentes falta
Vem, memória da casa, de corpo não enclausurada
e que se desloque quando nos movamos
Vem, motor do devir, que deixa a cada um o seu crescimento,
a sua diferença e a sua desordem
Vem, deslocação da estância, negação da estatística e do algoritmo,
que nos ensina a ordem através do ruído
e que só na mobilidade encontras o repouso
Vem, força de Deus, deslocação do ponto fixo,
da casa murada e fria e defendida:
que um terremoto faça tremer a língua e estremecer o corpo
que não é neutro nunca se o calor o habita
Vem, sabedoria, dizer à nossa vida que o racional é lacunar,
efeito de margem, e só há saber das ilhas
vem ensinar à nossa vida a finitude
e que recebamos sem êxtases inúteis nem cegueira
o invisível que em nós trabalha o barro
Vem, amor derramado em nossos corações,
vem lembrar que um coração frio
não pode compreender uma palavra de fogo
e que só há vida e piedade e coragem porque o amor nos move
Vem, instante de fogo e de ternura,
alegria sem medo do ilimitado do corpo e do ilimitado do dom
que invocamos neste fim de tarde
e que nos ensinas a rezar
José Augusto Mourão, OP
(In, “O Nome e a Forma”, Pedra Angular, 2009)

Como é possível "orar sempre"?

Disse depois uma parábola sobre a necessidade de orar sempre, sem jamais cessar (cf. Lucas 18.1-8). Estas palavras, sempre e jamais, infinitas e definitivas, parecem uma missão impossível. E no entanto há quem consiga: «No fim da sua vida, o frade Francisco já não orava, tornara-se oração» (Tomás de Celano, sobre o santo de Assis).
Mas como é possível trabalhar, encontrar, estudar, comer, dormir, e ao mesmo tempo orar? Temos de entender: orar não significa dizer orações; orar sempre não quer dizer repetir fórmulas sem nunca cessar. O próprio Jesus advertiu-nos: «Quando orardes, não multipliqueis palavras, o Pai sabe…» (Mateus 6,7).
Um mestre espiritual dos monges antigos, Evágrio o Pôntico, assegura-nos: «Não vos comprazais no número de salmos que recitastes: isso lança um véu sobre o teu coração. Vale mais uma só palavra na intimidade, que mil estando longe». Intimidade: orar, por vezes, é apenas sentir uma voz misteriosa que nos sussurra ao ouvido: Eu amo-te, Eu amo-te, Eu amo-te. E tentar responder.
Orar é como querer bem, há sempre tempo para querer bem: se amas alguém, ama-lo dia e noite, sem nunca cessar. Basta apenas que seja evocado o nome e o rosto, e de ti alguma coisa se põe em viagem rumo a essa pessoa. Assim é com Deus: pensas nele, chama-lo, e de ti algo se põe em viagem na direção do eterno: «O desejo ora sempre, mesmo se a língua emudece. Se tu desejares sempre, oras sempre» (Santo Agostinho). 
O teu desejo de oração é já oração. A mulher grávida, mesmo se não pensa continuamente n a criatura que vive nela, torna-se cada vez mais mãe a cada batimento do coração. 
O Evangelho conduz-nos depois à escola de oração de uma viúva, uma bela figura de mulher, forte e digna, anónima e inesquecível, indómita perante o abuso. Havia um juíz corrupto. E uma viúva dirigia-se diariamente a ele, e pedia-lhe: faz-me justiça contra o meu adversário!
Uma mulher que não se rende revela-nos que a oração é um “não” gritado ao “é assim a vida”, é o primeiro choro de uma história recém-nascida: a oração muda o mundo, mudando-nos o coração. Aqui Deus não é representado pelo juiz da parábola, encontramo-lo antes na pobre viúva, que é carne de Deus em que grita a fome de justiça. 
Porquê orar? É como perguntar: porquê respirar? Para viver! No fim de contas, orar é fácil como respirar. «Respirai sempre Cristo», última pérola do abade António aos seus monges, porque está próximo de nós. «Nele, com efeito, vivemos, nos movemos e existimos» (Atos 17,28). Por isso a oração é fácil como o respiro, simples e vital como respirar o próprio ar de Deus.
Ermes Ronchi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 17.10.2019 no SNPC

30 de abril de 2020

Celebraremos 34 anos da criação de nossa amada Diocese de Guanhães




Querido povo da nossa amada Diocese de Guanhães!
Viva, São Miguel! Viva São José Operário!

A nossa Diocese de Guanhães completará, amanhã, 34 anos de evangelização. Pela primeira vez celebraremos o aniversário de nossa Diocese sem a presença física dos nossos diocesanos. Digo presença física, porque todos se fazem presentes espiritualmente, rezando conosco, através dos meios de comunicação – redes sociais.

Com isso retomamos o sentido da Igreja Doméstica, como nos falou o Apóstolo São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios (1 Cor 16,19), nas saudações finais: “As Igrejas da Ásia enviam saudações a vocês. Áquila e Priscila, com a Igreja que se reúne na casa deles, enviam a vocês muitas saudações no Senhor.”

O Catecismo da Igreja Católica, quanto à Igreja Doméstica, assim nos fala: “Cristo quis nascer e crescer no seio da Sagrada Família de José e Maria. A Igreja não é outra coisa senão a ‘família de Deus’. Desde suas origens, o núcleo da Igreja era, em geral, constituído por aqueles que ‘com toda a sua casa’ se tornavam cristãos. Quando eles se convertiam, desejavam também que ‘toda a sua casa’ fosse salva.”(Cat. Nº 1655).

Devido à Pandemia da Covid-19 que atormenta a humanidade, a necessidade do isolamento social tornou-se imprescindível para a preservação da vida. As famílias, de seus lares, têm demonstrado e irradiado uma fé viva, transformando, de fato, suas casas em verdadeiras Igrejas Domésticas.

Neste dia em que a Igreja comemora São José Operário, dia do trabalho, quero me dirigir a todos vocês que, de suas casas, rezam conosco pela caminhada da nossa Igreja diocesana, fazendo sempre memória de todos aqueles e aquelas que por aqui já se passaram e deixaram a sua preciosa semente de evangelização.

Destacamos nosso primeiro bispo Dom Antônio Felippe da Cunha (in memoriam), Pe. Saint Clair Ferreira Filho (in memorian), Administrador Diocesano, Dom José Heleno (Administrador Apóstolico), Dom Emanuel Messias de Oliveira, o então Pe. Marcello Romano, Administrador Diocesano, Dom Jeremias Antônio de Jesus, Dom Darci José Nicioli, Administrador Apostólico e tantos outros padres, leigos e leigas que ajudaram a construir a história desta Diocese.

Exorto a todos para não desanimarem. Esta fase difícil, com a graça de Deus, passará logo, e, assim, poderemos nos reencontrar em nossas Celebrações Litúrgicas, encontros de formação, e, num afetuoso abraço, acolhermo-nos como filhos e filhas de Deus, formando uma verdadeira Comunidade Eclesial Missionária, alicerçada no Pilar da Palavra, do Pão, da Caridade e da Ação Missionária.

Concluindo com esta Oração, peçamos a Proteção de São José Operário por todos nós, de modo especial para todos os trabalhadores empregados e desempregados, que com seu trabalho, participam do prolongamento da obra da criação:

Ó Deus, que aprendamos com São José
Operário, homem de bondade, esperança e
humildade, o carpinteiro de Nazaré, que disse sim ao
Senhor, cuidando de Vossa Sagrada Família, o mesmo fazer.

Ó Deus, que aprendamos com ele,
homem do povo, patrono de todos
trabalhadores, compromissos inadiáveis com
a justiça, a esperança, a paz, o amor e a fraternidade.

Ó Deus, por intercessão de São José Operário,
Vos pedimos que nunca nos falte trabalho digno
e salário justo, para que continuemos com força e coragem
a fazer do trabalho um prolongamento da Vossa Obra da Criação.

Que a exemplo de São José Operário,
aprendamos a amar, a vibrar e a sorrir com o labor
de cada dia, para que muitos frutos sejam produzidos.

Por intercessão deste grande Santo
agradecemos, ó Deus Todo-Poderoso, pelos benefícios
que nos tendes concedido, por meio do Vosso Amado Filho
que vive e reina em comunhão com Vosso Espírito. Amém.

PS: Escrito em parceria com o Pe. Dilton - Coordenador Diocesano de Pastoral da Diocese de Guanhães - MG


27 de abril de 2020

Contemplar Cristo na Liturgia



A Constituição Sacrosanctum Concilium (SC), carta magna da Liturgia de rito romano, foi promulgada em 4 de dezembro de 1963 por Paulo VI. Com ela, a Igreja Latina teve a oportunidade de redescobrir a fonte de sua espiritualidade, há muito esquecida: a Sagrada Liturgia. Uma análise profunda da Constituição nos fará perceber que, em síntese, a Liturgia é Cristo. Sua vida, sua pessoa, sua palavra e suas ações podem ser contempladas, saboreadas e vividas mediante os ritos e preces da Igreja. Numa expressão muito simples, mas de grande teor teológico: “Liturgia é a encarnação do Mistério Pascal em nosso corpo.” 1

Essa compreensão sobre a Sagrada Liturgia é fruto de um longo percurso: o Movimento Litúrgico, que começou no final do século XIX. A SC só pode ser compreendida dentro deste grande processo de renovação da vida cristã. A valorização das fontes bíblicas, patrísticas e litúrgicas – documentos antiquíssimos que narram, exprimem e até regulamentam a vida espiritual da Igreja dos primeiros séculos – foi decisivo para a confecção da Constituição sobre a Liturgia.
A Liturgia é Cristo
Sua vida, sua pessoa e sua palavra podem ser contempladas e vividas mediante os ritos da Igreja
Uma consulta mais pormenorizada do texto da SC nos fará perceber várias citações não apenas bíblicas, mas de teólogos da época patrística (Inácio de Antioquia, Agostinho). Há também muitas alusões aos textos litúrgicos (Sacramentário Veronense, Missal Romano). Por esta razão, costuma-se dizer que o Concílio devolveu a Liturgia às suas origens, uma vez que muitos elementos haviam se perdido ou descaracterizado com o passar do tempo.
Evidentemente, as orientações emanadas da Sacrosanctum Concilium não se limitam ao “restauro” de elementos rituais que tinham caído em desuso como o Salmo Responsorial, a homilia e a oração dos fieis no caso da Missa. A SC propôs uma compreensão diferente sobre a Liturgia, daquela que estava em vigor. A Liturgia, toda ela, e não apenas a Celebração Eucarística, é vista como expressão e manifestação do Mistério de Cristo total: cabeça e membros (SC 2).
Rompe-se com aquela compreensão puramente cerimonial dos ritos e parte-se para a aproximação pastoral, teológica e espiritual que entende a linguagem antropológico-cultural e religiosa como decisiva para seu incremento. Sobre isso, o número 5 da SC afirma: “havendo outrora falado muitas vezes e de muitos modos aos pais pelos profetas (Hb 1,11), quando veio a plenitude dos tempos, mandou seu Filho, Verbo feito carne, ungido pelo Espírito Santo, para anunciar a boa nova aos pobres, curar os contritos de coração como médico da carne e do espírito, mediador entre Deus e os homens. Com efeito sua humanidade, na unidade da pessoa do Verbo, foi o instrumento de nossa salvação”.
Pe. Márcio Pimentel
In: Opinião e notícias 9.03.2018

EMAÚS: recordar a história – sentir a história

"Conversavam sobre todas as coisas que tinham acontecido” (Lc 24,14)
Nossa vida é parte da História, e esta, por sua vez, é formada pelas histórias de nossas vidas, pontilhadas e marcadas pela presença de outras muitas histórias.
História, por si mesma, é provocante e nos fascina; ela tem um estranho poder de sedução. Nós nos reconhecemos nas histórias da História; isso nos facilita tomar consciência de onde estamos e quem somos, e nos ajuda a assumir decisões mais maduras frente aos desafios e surpresas que a vida nos reserva.
A vida só tem sentido quando se torna História, isto é, quando não se limita a repetir o passado, mas quando engendra algo novo e diferente a partir de uma História internalizada e saboreada.
É somente no nível mais profundo que o ser humano transforma seu “tempo” em história e seu “espaço” em encontro.
No relato dos “discípulos de Emaús”, o encontro com o Ressuscitado nos ajuda a “ler” a História, pessoal e coletiva, de uma maneira diferente e instigante. A história triste e fracassada dos dois discípulos adquire um novo sentido a partir da luz dos relatos bíblicos que o Peregrino traz à memória.
A partir da “memória bíblica”, eles são movidos a “re-ler” a própria história com novos olhos, re-construindo-a, dando a ela um novo significado e deixando-se impelir a escrever uma nova história.
Marcados pelo dinamismo da Ressurreição, cremos profundamente na força evocativa e transformadora da história; encontrar-nos com ela significa caminharmos para o interior do mistério da mesma história; significa também deixar-nos questionar, iluminar e mobilizar por ela.
Com isso, re-iniciamos um novo caminho de aventura, que consiste não só em receber e celebrar a história, mas atualizá-la, reescrevê-la, confirmá-la... Uma história com rosto de futuro... e um futuro inspirador.
história se revela, assim, como um húmus vivente, uma atmosfera de graça, uma torrente subterrânea na qual se nutre todo o processo do seguimento de Jesus. Não é fora da História e de sua história que o(a) seguidor(a) de Jesus pode reconhecer a Vontade de Deus e escutar Seu apelo; porque “Deus se fez História” e só o Verbo Encarnado, agora Ressuscitado, pode ser “o verdadeiro fundamento da história” (S. Inácio). A partir do Jesus ressuscitado, a história de cada um e da humanidade inteira adquire uma nova luz e um novo sentido e se abre a um vasto horizonte de compromisso.
história pessoal do cristão e a história do mundo tornam-se, portanto, o “lugar” habitual da experiência de Deus, a montanha da misteriosa sarça ardente que não se consome. 
Fazer memória das histórias não significa querer mudá-las, mas adquirir nova perspectiva, um novo olhar. Com freqüência, esta perspectiva nos ajuda a entender melhor nossa situação atual. Trata-se da “memória agradecida”: tudo tem sentido, nada é desperdiçado...
Quando a história é contada e re-contada, acontece a cura da memória. Em lugar de uma história opressiva e pesada, passamos a contar com uma “história redentora”. O momento da Graça é precisamente esse: quando, de repente, a perspectiva muda, encontramos um “novo sentido” e surge uma saída do emara-nhado de lembranças, emoções e histórias de fracassos e decepções.
Isso aparece claramente no relato evangélico deste domingo.
Na narrativa, o Forasteiro ajuda os dois discípulos a “desatar” o nó de suas lembranças traumáticas e a compor uma nova história. A história de Jesus, com seu fim decepcionante, tornou-se pesada e eles procuram fugir de Jerusalém e da terrível lembrança da morte do Mestre. Mas a história os acompanha na estrada. Não param de repeti-la. Mesmo quando dizem as palavras certas, a intensidade emocional da experiência não lhes permite ouvir a história de uma perspectiva diferente. 
Enquanto caminhavam, conversavam e discutiam com tal intensidade que nem perceberam a aproximação do forasteiro. Falar de maneira tão intensa de uma experiência recente demonstra que ela teve forte impacto na vida deles, mas o significado desta dura experiência está envolvido numa obscuridade.
Para eles, a história não faz sentido. A história de Jesus, com seu fim decepcionante, tornou-se agora traumática. Esforçam-se para encontrar a única coisa que vai ajudá-los a superar a dor, transformar a lembrança, permitir que continuem suas vidas, refugiando-se no passado.
Foi preciso discernimento por parte do Forasteiro para libertar seus discípulos daquela interpretação nociva da história. Ele reorienta a história sem diminuir a gravidade do que acontecera.
O Forasteiro não só reconta a história de Jesus, mas também tem de remodelar todas as histórias das relações de Deus com Israel. A “história pessoal” é “recontada” e considerada no contexto de uma história muito mais ampla; há uma ligação profunda entre todas as histórias, constituindo-se na grande História da Salvação. A descoberta desta nova perspectiva acontece como momento de graça que desce sobre eles.
história re-contada começa a reconstruir a humanidade deles, a esperança vai retornando, os corações vão se aquecendo, a alegria vai surgindo em seus rostos... O Forasteiro, ao criar um círculo de confiança, abriu “espaço terapêutico” para que os discípulos contassem sua história em segurança e começassem a re-alimentar uma nova esperança. Foi criado um ambiente de hospitalidade que culminou na Ceia.
É nesse ambiente que a taça do sofrimento transformou-se na “taça da esperança”.
Das cinzas brotaram a esperança, o entusiasmo e os sonhos... e eles apressaram-se a voltar para Jerusalém a fim de partilhar a descoberta de um novo sentido da história. 
A partir do fundamento da História (Jesus Cristo), contemplamos nossa própria história (pessoal e institucional): história que deve ser observada, lida, discernida. Tal experiência nos ajuda a abrir os olhos para a novidade inesgotável da vida, nos faz “aquecer o coração”, desperta em nós o desejo e mobiliza todas as nossas capacidades para um compromisso de ação transformadora na história pessoal e coletiva.
História está sempre aberta, desafiando-nos, arrancando-nos de nosso imobilismo, despertando nossa criatividade para ser re-escrita de uma maneira diferente.
Nossa história pode ser poderosa motivadora de mudança; ela nos levanta quando estamos dispersos e sem direção; ela não é apenas relato do passado, mas parte viva do que somos agora; ela nos traz para “casa”, para nossa própria integridade e identidade.
Assim, a experiência pascal significa “conhecer”, “sentir” e “amar” a nossa própria história. É uma verdadeira experiência de Ressurreição.
Só assim a história se converte em “Epifania” (manifestação) de Deus e nos permite compreender, acolher e integrar tudo o que acontece, dentro e fora de nós.
Este é um tempo de Graça: o encontro vivo da “história” celebrada com o compromisso de construção da “nova história”, mais ousada e mais criativa. Trata-se de um momento tão fortalecedor e jubiloso que estremecemos reverentes diante do que celebramos.
Sem a luz da Ressurreição, nossa história, pessoal e coletiva, se reduz a eventos opacos, vazios, tristes...
Com a Ressurreição, a história se ilumina, se transfigura e nos desafia. A Ressurreição plenifica, dá sentido e costura os eventos, constituindo-se em “História de Salvação”. Ela nos faz ver o que todo mundo vê, mas de um “modo” diferente: vemos mais longe, vemos além, vemos mais fundo... 

Texto bíblico:  Lc 24,13-35

Na oração:   Diante da história pessoal e social, sinto-me desafiado? Paralisado(a)? com medo? Inquieto(a)?
                    Quanto de esperança carrego em meu interior?
                    O que me faz abrasar o coração diante de uma história que parece um fracasso?



Pe. Adroaldo Palaoro sj   

22 de abril de 2020

Ressurreição: tocar a carne, curar as feridas

“...mostrou-lhes as mãos e o lado” (Jo 20,20)
No segundo domingo de Páscoa de cada ano, a liturgia nos apresenta o belíssimo relato que só se encontra no evangelho de João. Esta dupla aparição do Ressuscitado aos discípulos, primeiro na ausência de Tomé, e depois na sua presença, nos diz algo sobre a comunidade cristã primitiva, mas também traz luz sobre as nossas comunidades hoje.
Aí está constituída a nova comunidade pascal; uma comunidade em torno à presença de Jesus; uma comunidade chamada a viver da experiência do encontro com Aquele que consumou sua vida em favor da vida de todos; suas chagas serão, de agora em diante, a melhor expressão da identidade entre o Crucificado e o Ressuscitado. Uma comunidade animada pelo mesmo Espírito de Jesus; uma comunidade não fechada sobre si mesma, alienada das chagas da humanidade, mas aberta, como Ele, ao amor universal para com todas as pessoas. Uma comunidade de amor, capaz de viver o perdão e ser presença misericordiosa.
Somos já “seres ressuscitados” quando vivemos estes dons do Ressuscitado, comprometidos com o Seu projeto carregado de vida, para aliviar as dores e as feridas da humanidade.
A CF deste ano, com o tema “Vida: dom e missão”, nos faz tomar consciência que, aquele(a) que se experimenta a si mesmo como “Vida” é já uma pessoa “ressuscitada”. Pois a vida autêntica é a vida movida, iluminada, impulsionada pelo amor.
Quando acolhemos a presença do Ressuscitado, nossa vida se destrava e torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de liberdade, consciência, amor, arte, alegria, compaixão.... É vida em movimento, gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação, comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que desperta o olhar para o vasto mundo e move à missão.
Chama-nos a atenção (sobretudo nos evangelhos de Lucas e de João) que Jesus ressuscitado tenha tanto interesse em mostrar a seus discípulos as chagas de suas mãos, seus pés e de seu lado aberto. Quê significa isto, um ressuscitado com chagas? Diante de um martirizado ressuscitado, qualquer um esperaria ver um corpo totalmente renovado, rejuvenescido, limpo, sem feridas e marcas do martírio.
E, no entanto, Jesus ressuscitado toma a iniciativa, deixa-se ver, faz-se presença, provoca um encontro. Os discípulos e discípulas buscam um cadáver, para lhe manifestar respeito e carinho. Jesus ressuscitado, como bom pedagogo, busca aqueles e aquelas que o tinham seguido desde a Galileia e, respeitando a liberdade e os tempos de cada um(a), os ressuscita também, reconstruindo-os em sua identidade ferida.
As chagas de Jesus ressuscitado são algo mais que um modo de dizer “sou eu mesmo”. Elas são expressão de identidade, ou seja, pertencem a seu novo ser de ressuscitado. Dito de outro modo: Jesus, vencedor da morte, não abandona o que é caduco e frágil da existência mortal. A fragilidade da carne foi assumida na glória do Corpo ressuscitado. Por isso, suas chagas são terapêuticas, pois curam as nossas chagas do fracasso, do medo, da tristeza, da solidão, da dor... São feridas que curam feridas
A ressurreição afeta todo o nosso ser: tudo é iluminado, re-significado, tudo adquire novo sentido.
Em meio à comunidade dos discípulos reunida, o evangelho de João destaca a figura de Tomé, elaborando em torno a ele um relado de muita densidade e com muita inspiração. Tomé é a expressão do ser humano a quem lhe custa crer na ressurreição do Jesus Histórico, do Jesus das chagas nas mãos e no lado, do Jesus da carne, do Jesus do povo crucificado.
Provavelmente, ele acreditava em Jesus, mas em um “Jesus espiritual”, puramente interior, sem necessidade de compromisso comunitário, sem chagas no seu corpo. Talvez, ele estivesse mais centrado no Cristo glorioso, desligado da história de Jesus, das mãos que tocaram os pobres e curaram os doentes, do coração que amou os excluídos da sociedade, dos pés que romperam barreiras e fronteiras...
Por meio de outros testemunhos da literatura cristã antiga, sabemos que Tomé queria tocar em Jesus só de um modo espiritual, criando um tipo de comunidade de feição “quase angelical”, distanciando-se da humanidade de Jesus e vivendo uma religião desumanizadora, centrada só em ritos, doutrinas, leis...
Contra isso, a comunidade lhe diz que é preciso “tocar nas chagas de Jesus”, que o Ressuscitado é o mesmo Jesus da História, Aquele que foi chagado pela violência e pela rejeição. O Senhor Ressuscitado continua sendo aquele que carrega em suas mãos e lado as feridas de sua entrega, os sinais de seu amor crucificado em favor de todos. Este Jesus pascal, continua estando presente nas chagas dos homens e mulheres de mãos quebradas, na ferida do lado dos homens e mulheres que sofrem.
As chagas de Jesus, em seu lado e em suas mãos, são as chagas de um perseguido e condenado pela “justiça” do mundo. Isso significa que o Jesus ressuscitado não é um “fantasma”, mas o mesmo Jesus que foi crucificado.
Ao mostrar suas chagas, Jesus ressuscitado revela que as chagas da humanidade continuam abertas, esperando que seus(suas) seguidores(as) prolonguem os gestos de cura e cuidado do mesmo Jesus. São estes e estas que hoje atestam a vitalidade do Ressuscitado.
No entanto, não há mais o Cristo visível para tocar. Os únicos traços para ver e tocar, que confirmam a realidade de sua presença, são as pessoas de cada tempo que lutam por uma terra onde os pobres e os excluídos terão seu lugar, onde o ódio não rege as relações, onde a bondade predomina sobre o desprezo, onde o respeito impede a violência capaz dos piores instintos, onde a acolhida impede o fechamento em si mesmo.
Portanto, crer na Ressurreição não é simples adesão a um dogma de fé, é compromisso com a vida.
O “toque pascal” de Tomé (“coloque tua mão em minha ferida...”) é o “toque das chagas”, é a experiência dos crucificados do mundo. Só podemos “tocar” em Jesus de verdade, e confessar sua Páscoa, “tocando” (ajudando) os enfermos e crucificados da história.
Não há experiência pascal se não descobrimos Jesus ressuscitado nas chagas dos pobres, doentes e excluídos de nosso mundo; “tocar” estas chagas vai além de um gesto físico; implica ser presença solidária, acompanhar, ajudar, alimentar uma sintonia e comunhão com aqueles(as) que clamam por uma presença consoladora, carregada de ternura.
Enfim, o evangelho deste domingo nos pede:
- Que abramos as portas e as janelas das comunidades cristãos, para que todos possam ver o quanto de vida há dentro dela, para que vejam quem somos, como vivemos..., de maneira que possamos oferecer e compartilhar espaço de perdão, de acolhida sem preconceitos, de amor oblativo...; é preciso afastar a pedra do dogmatismo, do legalismo, do ritualismo... que nos mantém sufocados ou respirando o ar fétido dos túmulos;
- Que vivamos em comunhão, que permitamos que Tomé retorne à comunidade. A transformação de Tomé implica também uma mudança da Igreja, que o acolhe e lhe oferece um lugar a partir do Jesus crucificado; que ela seja espaço aberto, integrador, acolhedor do diferente.
- Que sonhemos também com uma Igreja que rompa os túmulos do conservadorismo, do legalismo, da apatia, e se abra à desafiante situação de nosso mundo, “vivendo em saída” para “tocar” os chagados e lhes oferecer o dom da unção e do consolo. 
Texto bíblico:  Jo 20,19-31
Na oração: Nos Exercícios Espirituais, S. Inácio   nos convida a considerar como o Ressuscitado exerce o “ofício de consolar”. 
Somos, pois, consolados em nossas tribulações e dores para poder consolar os outros nas suas. Trata-se de uma experiência transbordante, expansiva, que nos impulsiona em direção aos outros.
Como seguidores(as) do Vivente, somos chamados(as) a exercer este “ofício de consolar”; a experiência da Ressurreição nos move a “descer” junto à realidade do outro (seus dramas, fracassos, enfermidades, perda de sentido da vida...) e exercer este ministério humanizador. “Ser vida ressuscitada que desperta outras vidas”: vida plenificada, iluminada, integrada... pela experiência de encontro com o Ressuscitado e que flui em direção às vidas bloqueadas, necrosadas... Assim como a consolação é o canal privilegiado pelo qual o Deus da Vida se comunica e atua em nós, o ofício do consolo é o canal por onde flui a vida.
- Como ser presença consoladora nestes tempos de pandemia?
Pe. Adroaldo Palaoro sj

16 de abril de 2020

Alegremo-nos! Vive Aquele que estava morto


Riquíssimo o Sermão do Papa e Doutor da Igreja, São Gregório Magno (séc. VI), sobre a passagem do Evangelho em Jesus Ressuscitado entra pela porta fechada, onde se encontravam os discípulos por medo dos judeus. 

Colocando-Se no meio deles, comunica-lhes a paz e, com o sopro, comunica-lhes o Espírito, enviando-os em missão; e, na segunda parte, a nova manifestação do Ressuscitado e a profissão de fé feita por Tomé ao ver e tocar as chagas gloriosas do Senhor – “Meu Senhor e meu Deus” (cf. Jo 20, 19-31).

“A primeira questão que nos propõe a leitura do texto evangélica é esta: como pôde ser real o Corpo do Senhor depois da ressurreição, se pode entrar na casa estando as portas fechadas? Porém, temos de ter presente que as obras de Deus não seriam admiráveis se fossem compreensíveis para a nossa inteligência; e que a fé não tem mérito algum, se a razão humana lhe oferece as provas.

Mas estas mesmas obras de nosso Redentor, que em si mesmas são incompreensíveis, devemos considera-las à luz de outras situações suas, para que as façanhas mais maravilhosas tornem críveis as coisas simplesmente admiráveis.

De fato, aquele Corpo do Senhor que, fechadas as portas, entrou onde estavam os discípulos, é exatamente o mesmo Corpo que, no momento de Seu nascimento, saiu aos olhos dos homens do seio selado da Virgem. O que tem, pois de estranho, que Ele, depois de Sua ressurreição, já eternamente triunfante, entrasse através das portas fechadas o que, vindo para morrer, saiu do seio selado da Virgem?

Mas como, diante daquele Corpo visível, duvidava a fé daqueles que O contemplavam, em seguida mostrou-lhes as mãos e o lado; ofereceu-Se para que apalpassem aquela carne, que tinha introduzido através das portas fechadas.

De uma forma maravilhosa e inestimável nosso Redentor, após Sua ressurreição, revelou um Corpo ao mesmo tempo incorruptível e palpável, para que o mostrando incorruptível convidasse ao prêmio, e apresentando-o palpável assegurasse a fé.

Mostrou-se, pois, incorruptível e palpável para deixar fora de dúvidas que Seu Corpo, depois da ressurreição, era da mesma natureza, mas de glória distinta.

E lhes disse: ‘A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou, assim também Eu vos envio’. Isto é, como Pai, que é Deus, enviou a mim que sou Deus, assim também Eu, que sou homem, vos envio a vós, que sois homens.

O Pai enviou ao Filho e determinou que Se encarnasse para a redenção do gênero humano. Certamente quis que viesse ao mundo para padecer, entretanto, amou ao Filho a quem mandou para a paixão. Também aos Apóstolos que Ele escolheu, o Senhor os enviou ao mundo não para gozar, mas – como Ele mesmo foi enviado – para padecer, de forma semelhante aos discípulos que são amados pelo Senhor, mas são enviados ao mundo para padecer. Por isso Ele disse:

‘Como o Pai me enviou, assim também Eu vos envio’, isto é, quando Eu vos envio ao abalo das perseguições, estou vos amando com o mesmo amor com que o Pai me ama, e que, apesar disso, fez-me vir para suportar tormentos.

A palavra ‘enviar’ pode entender-se também de Sua natureza divina. Na verdade, diz-se que o Filho é enviado pelo Pai, enquanto que é gerado pelo Pai. Na mesma ordem de coisas, o próprio Filho nos fala de enviar-nos o Espírito Santo que, sendo igual ao Pai e ao Filho, contudo não Se encarnou.

De fato, Ele diz: ‘Quando vier o Paráclito, que vos enviarei deste o Pai.’ Sendo que deveríamos interpretar a palavra ‘enviar’ unicamente no sentido de ‘encarnar-se’, de modo algum poderia dizer-se do Espírito Santo que seria ‘enviado’, visto que nunca Se encarnou.

Sua missão Se identifica com a processão, pela qual procede do Pai e do Filho. Portanto, assim como se diz do Espírito que será enviado porque procede, assim também se diz corretamente do Filho que é enviado, no sentido de que é gerado”. (1)

Três pontos podem ser descatados:

- O primeiro, quando o bispo fala do Mistério da Encarnação do Senhor no ventre de Maria, e este mesmo corpo glorioso, o corpo do Ressuscitado. Maria concebendo pela ação do Espírito mantém a perpétua virgindade, como expressa um dos Dogmas Mariano da Igreja Católica.

A profissão de fé que fazemos na Encarnação do Senhor não se separa de outra verdade inseparável que também professamos no Creio, a Sua Ressurreição, tendo passado pela morte.

- Segundo, sobre o Senhor Ressuscitado ter-Se manifestado de forma incorruptível e palpável, nos assegurando o mesmo destino, e nos possibilitando o afastamento de qualquer dúvida de Sua vitória sobre a morte, de Sua Ressurreição.

- Terceiro, o fato de, sendo Deus, segunda pessoa da Santíssima Trindade, ter sido enviado pelo Pai, com a presença do Espírito que sobre Ele pousava inseparavelmente, e que tendo nos amado, nos amou até o fim, suportando o padecimento, o sofrimento e a morte para nos redimir e nos reconciliar com Deus por Seu Sangue derramado.

E agora, Ele mesmo, vivo e glorioso, é quem nos envia em missão no mundo, também com a assistência do Espírito Santo, que nos é dado pelo Seu sopro divino.

Na criação, recebemos o sopro para termos vida, e com a Ressurreição do Senhor recebemos o Espírito Santo, que nos faz novas criaturas, e nos assiste na remissão dos pecados.

Com este Sermão, temos a graça de renovar nossa fé na Ressurreição do Senhor, pois se Cristo não tivesse ressuscitado, vazia seria a nossa pregação, e ilusória a nossa fé, como afirmou o Apóstolo Paulo (cf. 1 Cor 15, 13-17).

Também temos a graça de renovar nossa fidelidade ao Senhor, que nos envia com a missão de anunciar e testemunhar a Boa-Nova do Evangelho, fazendo necessárias passagens em nossa vida: da tristeza para a alegria, do desânimo para a esperança; do medo para a coragem, da morte para a vida. 

Oremos: 

“Ó Deus de eterna misericórdia, que reacendeis a fé do Vosso povo na renovação da festa pascal, aumentai a graça que nos destes. E fazei que compreendamos melhor o Batismo que nos lavou, o Espírito que nos deu a vida e o Sangue que nos redimiu. Por nosso Senhor Jesus Cristo, Vosso Filho, na Unidade do Espírito Santo. Amém". (2)


(1) Lecionário Patrístico Dominical - Editora Vozes - PP. 343-344 
(2) Oração do dia do 2º Domingo de Páscoa.

Dom Otacilio Ferreira de Lacerda - Bispo da Diocese de Guanhães - MG