18 de maio de 2020

Silêncio...

Não é a ausência de som, mas de ruído. 
Em 1951, o compositor americano John Cage visitou a câmara anecóica mais avançada do mundo da época. Com o seu ouvido apurado poderia ouvir apenas o silêncio, mas não. Ouviu dois sons. Saindo da câmara falou com o técnico e perguntou-lhe que dois sons eram os que tinha ouvido. Um mais elevado e outro mais baixo. Juntos perceberam que Cage tinha escutado o som do seu sistema nervoso e o bombear do sangue. Imaginam? 
Silêncio é a escuta daquilo que nos dá vida e faz viver. No silêncio não nos abstraímos do mundo à nossa volta, mas encontramos diversos momentos presentes que se cruzam e entrecruzam em infinitas tonalidades. É a sinfonia da vida escutada em momentos de quietude.
”Não podemos ter medo do silêncio, pois, tem tanto para nos ensinar.” (Ryan Holiday, ‘Stillness is the Key’)
Quando cultivamos o silêncio abrimos a mente ao mar por onde navegam os pensamentos mais íntimos e criativos. Lembras-te daquela ideia luminosa que proveio do silêncio?
Mas hoje o desafio é muito grande porque o ruído não chega apenas através dos ouvidos. Chega também pelos olhos colados nos diversos ecrãs, ou pelos pensamentos exteriores que consomem a nossa atenção para a converter em preocupação. Vemos muita informação. Tanta que a sua suposta luminosidade cega-nos ao longo do tempo. Tanto que perdemos toda a riqueza visual que o silêncio revela.
”A totalidade da vida reside no verbo ‘ver’.” (Teilhard de Chardin s.j.)
O silêncio revela o espaço entre as notas.
”Com as notas lido melhor do que muitos pianistas. Mas as pausas entre as notas - ah, é aí que reside a arte!” (Arthur Schnabel, pianista)
A ausência de momentos de pausa no dia deixa-nos sem fôlego e surdos. Não é, por isso, de admirar quanta dificuldade sentimos ao escutar os outros. Não temos tempo. Nem sequer temos tempo para estar a sós com os nossos pensamentos, em silêncio. 
Daí a dificuldade de tantos os que se dirigem a Deus e sentem que Ele não responde. Ele que tanto fala pelo silêncio, simplesmente, não consegue fazer-Se ouvir. Conto-te um segredo… shh… podemos sempre recomeçar.

Miguel Oliveira Panão

In: imissio.net 14.11.2019

Veni Sancte Spiritus

VENI SANCTE SPIRITUS
José Augusto Mourão, OP
Vem, Espírito de Deus
vem como uma noite de fogo
e acorda o que em nós, na luz do dia, dorme
Vem, memória aberta, sobre o que acontece
e cumpra-se o que às nossas pobres visões presentes falta
Vem, memória da casa, de corpo não enclausurada
e que se desloque quando nos movamos
Vem, motor do devir, que deixa a cada um o seu crescimento,
a sua diferença e a sua desordem
Vem, deslocação da estância, negação da estatística e do algoritmo,
que nos ensina a ordem através do ruído
e que só na mobilidade encontras o repouso
Vem, força de Deus, deslocação do ponto fixo,
da casa murada e fria e defendida:
que um terremoto faça tremer a língua e estremecer o corpo
que não é neutro nunca se o calor o habita
Vem, sabedoria, dizer à nossa vida que o racional é lacunar,
efeito de margem, e só há saber das ilhas
vem ensinar à nossa vida a finitude
e que recebamos sem êxtases inúteis nem cegueira
o invisível que em nós trabalha o barro
Vem, amor derramado em nossos corações,
vem lembrar que um coração frio
não pode compreender uma palavra de fogo
e que só há vida e piedade e coragem porque o amor nos move
Vem, instante de fogo e de ternura,
alegria sem medo do ilimitado do corpo e do ilimitado do dom
que invocamos neste fim de tarde
e que nos ensinas a rezar
José Augusto Mourão, OP
(In, “O Nome e a Forma”, Pedra Angular, 2009)

Como é possível "orar sempre"?

Disse depois uma parábola sobre a necessidade de orar sempre, sem jamais cessar (cf. Lucas 18.1-8). Estas palavras, sempre e jamais, infinitas e definitivas, parecem uma missão impossível. E no entanto há quem consiga: «No fim da sua vida, o frade Francisco já não orava, tornara-se oração» (Tomás de Celano, sobre o santo de Assis).
Mas como é possível trabalhar, encontrar, estudar, comer, dormir, e ao mesmo tempo orar? Temos de entender: orar não significa dizer orações; orar sempre não quer dizer repetir fórmulas sem nunca cessar. O próprio Jesus advertiu-nos: «Quando orardes, não multipliqueis palavras, o Pai sabe…» (Mateus 6,7).
Um mestre espiritual dos monges antigos, Evágrio o Pôntico, assegura-nos: «Não vos comprazais no número de salmos que recitastes: isso lança um véu sobre o teu coração. Vale mais uma só palavra na intimidade, que mil estando longe». Intimidade: orar, por vezes, é apenas sentir uma voz misteriosa que nos sussurra ao ouvido: Eu amo-te, Eu amo-te, Eu amo-te. E tentar responder.
Orar é como querer bem, há sempre tempo para querer bem: se amas alguém, ama-lo dia e noite, sem nunca cessar. Basta apenas que seja evocado o nome e o rosto, e de ti alguma coisa se põe em viagem rumo a essa pessoa. Assim é com Deus: pensas nele, chama-lo, e de ti algo se põe em viagem na direção do eterno: «O desejo ora sempre, mesmo se a língua emudece. Se tu desejares sempre, oras sempre» (Santo Agostinho). 
O teu desejo de oração é já oração. A mulher grávida, mesmo se não pensa continuamente n a criatura que vive nela, torna-se cada vez mais mãe a cada batimento do coração. 
O Evangelho conduz-nos depois à escola de oração de uma viúva, uma bela figura de mulher, forte e digna, anónima e inesquecível, indómita perante o abuso. Havia um juíz corrupto. E uma viúva dirigia-se diariamente a ele, e pedia-lhe: faz-me justiça contra o meu adversário!
Uma mulher que não se rende revela-nos que a oração é um “não” gritado ao “é assim a vida”, é o primeiro choro de uma história recém-nascida: a oração muda o mundo, mudando-nos o coração. Aqui Deus não é representado pelo juiz da parábola, encontramo-lo antes na pobre viúva, que é carne de Deus em que grita a fome de justiça. 
Porquê orar? É como perguntar: porquê respirar? Para viver! No fim de contas, orar é fácil como respirar. «Respirai sempre Cristo», última pérola do abade António aos seus monges, porque está próximo de nós. «Nele, com efeito, vivemos, nos movemos e existimos» (Atos 17,28). Por isso a oração é fácil como o respiro, simples e vital como respirar o próprio ar de Deus.
Ermes Ronchi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 17.10.2019 no SNPC