22 de abril de 2020

Ressurreição: tocar a carne, curar as feridas

“...mostrou-lhes as mãos e o lado” (Jo 20,20)
No segundo domingo de Páscoa de cada ano, a liturgia nos apresenta o belíssimo relato que só se encontra no evangelho de João. Esta dupla aparição do Ressuscitado aos discípulos, primeiro na ausência de Tomé, e depois na sua presença, nos diz algo sobre a comunidade cristã primitiva, mas também traz luz sobre as nossas comunidades hoje.
Aí está constituída a nova comunidade pascal; uma comunidade em torno à presença de Jesus; uma comunidade chamada a viver da experiência do encontro com Aquele que consumou sua vida em favor da vida de todos; suas chagas serão, de agora em diante, a melhor expressão da identidade entre o Crucificado e o Ressuscitado. Uma comunidade animada pelo mesmo Espírito de Jesus; uma comunidade não fechada sobre si mesma, alienada das chagas da humanidade, mas aberta, como Ele, ao amor universal para com todas as pessoas. Uma comunidade de amor, capaz de viver o perdão e ser presença misericordiosa.
Somos já “seres ressuscitados” quando vivemos estes dons do Ressuscitado, comprometidos com o Seu projeto carregado de vida, para aliviar as dores e as feridas da humanidade.
A CF deste ano, com o tema “Vida: dom e missão”, nos faz tomar consciência que, aquele(a) que se experimenta a si mesmo como “Vida” é já uma pessoa “ressuscitada”. Pois a vida autêntica é a vida movida, iluminada, impulsionada pelo amor.
Quando acolhemos a presença do Ressuscitado, nossa vida se destrava e torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de liberdade, consciência, amor, arte, alegria, compaixão.... É vida em movimento, gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação, comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que desperta o olhar para o vasto mundo e move à missão.
Chama-nos a atenção (sobretudo nos evangelhos de Lucas e de João) que Jesus ressuscitado tenha tanto interesse em mostrar a seus discípulos as chagas de suas mãos, seus pés e de seu lado aberto. Quê significa isto, um ressuscitado com chagas? Diante de um martirizado ressuscitado, qualquer um esperaria ver um corpo totalmente renovado, rejuvenescido, limpo, sem feridas e marcas do martírio.
E, no entanto, Jesus ressuscitado toma a iniciativa, deixa-se ver, faz-se presença, provoca um encontro. Os discípulos e discípulas buscam um cadáver, para lhe manifestar respeito e carinho. Jesus ressuscitado, como bom pedagogo, busca aqueles e aquelas que o tinham seguido desde a Galileia e, respeitando a liberdade e os tempos de cada um(a), os ressuscita também, reconstruindo-os em sua identidade ferida.
As chagas de Jesus ressuscitado são algo mais que um modo de dizer “sou eu mesmo”. Elas são expressão de identidade, ou seja, pertencem a seu novo ser de ressuscitado. Dito de outro modo: Jesus, vencedor da morte, não abandona o que é caduco e frágil da existência mortal. A fragilidade da carne foi assumida na glória do Corpo ressuscitado. Por isso, suas chagas são terapêuticas, pois curam as nossas chagas do fracasso, do medo, da tristeza, da solidão, da dor... São feridas que curam feridas
A ressurreição afeta todo o nosso ser: tudo é iluminado, re-significado, tudo adquire novo sentido.
Em meio à comunidade dos discípulos reunida, o evangelho de João destaca a figura de Tomé, elaborando em torno a ele um relado de muita densidade e com muita inspiração. Tomé é a expressão do ser humano a quem lhe custa crer na ressurreição do Jesus Histórico, do Jesus das chagas nas mãos e no lado, do Jesus da carne, do Jesus do povo crucificado.
Provavelmente, ele acreditava em Jesus, mas em um “Jesus espiritual”, puramente interior, sem necessidade de compromisso comunitário, sem chagas no seu corpo. Talvez, ele estivesse mais centrado no Cristo glorioso, desligado da história de Jesus, das mãos que tocaram os pobres e curaram os doentes, do coração que amou os excluídos da sociedade, dos pés que romperam barreiras e fronteiras...
Por meio de outros testemunhos da literatura cristã antiga, sabemos que Tomé queria tocar em Jesus só de um modo espiritual, criando um tipo de comunidade de feição “quase angelical”, distanciando-se da humanidade de Jesus e vivendo uma religião desumanizadora, centrada só em ritos, doutrinas, leis...
Contra isso, a comunidade lhe diz que é preciso “tocar nas chagas de Jesus”, que o Ressuscitado é o mesmo Jesus da História, Aquele que foi chagado pela violência e pela rejeição. O Senhor Ressuscitado continua sendo aquele que carrega em suas mãos e lado as feridas de sua entrega, os sinais de seu amor crucificado em favor de todos. Este Jesus pascal, continua estando presente nas chagas dos homens e mulheres de mãos quebradas, na ferida do lado dos homens e mulheres que sofrem.
As chagas de Jesus, em seu lado e em suas mãos, são as chagas de um perseguido e condenado pela “justiça” do mundo. Isso significa que o Jesus ressuscitado não é um “fantasma”, mas o mesmo Jesus que foi crucificado.
Ao mostrar suas chagas, Jesus ressuscitado revela que as chagas da humanidade continuam abertas, esperando que seus(suas) seguidores(as) prolonguem os gestos de cura e cuidado do mesmo Jesus. São estes e estas que hoje atestam a vitalidade do Ressuscitado.
No entanto, não há mais o Cristo visível para tocar. Os únicos traços para ver e tocar, que confirmam a realidade de sua presença, são as pessoas de cada tempo que lutam por uma terra onde os pobres e os excluídos terão seu lugar, onde o ódio não rege as relações, onde a bondade predomina sobre o desprezo, onde o respeito impede a violência capaz dos piores instintos, onde a acolhida impede o fechamento em si mesmo.
Portanto, crer na Ressurreição não é simples adesão a um dogma de fé, é compromisso com a vida.
O “toque pascal” de Tomé (“coloque tua mão em minha ferida...”) é o “toque das chagas”, é a experiência dos crucificados do mundo. Só podemos “tocar” em Jesus de verdade, e confessar sua Páscoa, “tocando” (ajudando) os enfermos e crucificados da história.
Não há experiência pascal se não descobrimos Jesus ressuscitado nas chagas dos pobres, doentes e excluídos de nosso mundo; “tocar” estas chagas vai além de um gesto físico; implica ser presença solidária, acompanhar, ajudar, alimentar uma sintonia e comunhão com aqueles(as) que clamam por uma presença consoladora, carregada de ternura.
Enfim, o evangelho deste domingo nos pede:
- Que abramos as portas e as janelas das comunidades cristãos, para que todos possam ver o quanto de vida há dentro dela, para que vejam quem somos, como vivemos..., de maneira que possamos oferecer e compartilhar espaço de perdão, de acolhida sem preconceitos, de amor oblativo...; é preciso afastar a pedra do dogmatismo, do legalismo, do ritualismo... que nos mantém sufocados ou respirando o ar fétido dos túmulos;
- Que vivamos em comunhão, que permitamos que Tomé retorne à comunidade. A transformação de Tomé implica também uma mudança da Igreja, que o acolhe e lhe oferece um lugar a partir do Jesus crucificado; que ela seja espaço aberto, integrador, acolhedor do diferente.
- Que sonhemos também com uma Igreja que rompa os túmulos do conservadorismo, do legalismo, da apatia, e se abra à desafiante situação de nosso mundo, “vivendo em saída” para “tocar” os chagados e lhes oferecer o dom da unção e do consolo. 
Texto bíblico:  Jo 20,19-31
Na oração: Nos Exercícios Espirituais, S. Inácio   nos convida a considerar como o Ressuscitado exerce o “ofício de consolar”. 
Somos, pois, consolados em nossas tribulações e dores para poder consolar os outros nas suas. Trata-se de uma experiência transbordante, expansiva, que nos impulsiona em direção aos outros.
Como seguidores(as) do Vivente, somos chamados(as) a exercer este “ofício de consolar”; a experiência da Ressurreição nos move a “descer” junto à realidade do outro (seus dramas, fracassos, enfermidades, perda de sentido da vida...) e exercer este ministério humanizador. “Ser vida ressuscitada que desperta outras vidas”: vida plenificada, iluminada, integrada... pela experiência de encontro com o Ressuscitado e que flui em direção às vidas bloqueadas, necrosadas... Assim como a consolação é o canal privilegiado pelo qual o Deus da Vida se comunica e atua em nós, o ofício do consolo é o canal por onde flui a vida.
- Como ser presença consoladora nestes tempos de pandemia?
Pe. Adroaldo Palaoro sj